Noite estrelada- Van Gogh
Em 1963, João Guimarães Rosa era
eleito para a Academia Brasileira de Letras. Contudo, recusou-se a tomar posse,
pois pressentia que, se o fizesse, iria morrer. Premonição? Acaso? Nunca
saberemos. Pelo menos nesta vida. Em 16 de novembro de 1967 aceitou, finalmente,
assumir a sua cadeira na Academia. Em seu discurso de posse disse: “A gente não morre. Fica encantado.” Três dias depois,
em 19 de novembro de 1967, teve um enfarto fulminante, vindo a falecer. O
médico, o embaixador, o escritor que revolucionou a literatura brasileira, se
encantou. Seu livro mais conhecido, e com certeza o mais importante, faz 50
anos: “Grande Sertão: Veredas”.
Nele encontramos inúmeras
passagens onde a transcendência, que aflorava na alma do homem Guimarães Rosa é
frequentemente exaltada. O diabo, figuração do mal, recebe quase uma centena de
nomes, na contagem feita pelo nosso confrade, Marco Aurélio Baggio, e
confirmada pelo outro confrade, José de Souza Andrade Filho, no livro do
primeiro, com prefácio do segundo: “Um abreviado do Grande
Sertão: Veredas”.
Mas a relação vida e morte está
presente em todo o texto de Guimarães Rosa. “Viver é muito perigoso!”
afirma pela boca de Riobaldo em algumas dezenas de vezes que não cheguei a
contar. Viver é realmente muito perigoso. Talvez porque, como ele também
afirmava, “A morte de cada um já está em edital”. Não diz se é com
hora e data marcadas, mas com a certeza de que acontecerá. Não há vida sem
morte. Nem mesmo com a decantada imortalidade acadêmica…
Contudo, a morte tem hora
marcada. Não na cronologia dos calendários, mas na realidade dessa relação
inseparável: vida e morte. Morto não morre. A vida é indispensável para o
morrer. Ora, vivo já não estou ontem. Para o ontem, já morri. E o amanhã, ainda
não veio, portanto, nele ainda não vivo. Só agora, no tempo presente, vivo
realmente. Portanto, agora é a única hora em que posso morrer, pois é a única
hora em que vivo estou. Por isso mesmo, “viver é muito perigoso!”
Cada instante em que vivo, pode ser o instante da minha morte. Daí a imperiosa
necessidade de valorizá-lo plenamente.
Baggio destaca o necessário para
se viver, no pensamento de Riobaldo – Guimarães Rosa – o necessário para
atravessar o rio da vida, como ele diz: “a coragem, a alegria, o amor, a
reza, o fazer, o contar, enfim o viver”. Para viver, é preciso viver. É preciso coragem para levantar em cada amanhecer. É preciso alegria para descobrir o sol, mesmo que as nuvens
o estejam ocultando. É preciso o amor, caminho de
duas vias onde só se ama quando se é amado. E só se ama quando se entrega
confiante nas mãos do amado, da amada.
A reza é necessária, pois é o ato de humildade que nos
aproxima de Deus. E sem a humildade só existe a soberba, com a soberba não
existe vida em plenitude. É preciso fazer, pois quem faz
escreve a sua história e não deixa para os outros essa tarefa que é somente
sua. É preciso contar, pois contando compartilhamos
a vida e a vida só existe se compartilhada. O homem não foi feito para ser só e
a solidão somente acaba quando podemos compartilhar o que fazemos e o que
sentimos. Para viver, repetimos, é realmente necessário viver.
Na plenitude do que isso significa.
Afinal, há os que estão vivos – mortos. Vegetam. Passam pela vida sem a ter
vivido, e por isso estão permanentemente mortos. Para esses, a morte é
banal. São os jagunços de ontem, os pistoleiros de hoje. Dizia Riobaldo
em sua iniciação: “Eu tinha de obedecer a ele, fazer o que
mandasse. Mandava matar. Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu
nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles”. Mas
matava, pois a vida era nada.
O tempo passa, algumas coisas
vão pela maturação. Na intemporalidade do Grande Sertão, símbolo da existência,
existem veredas. Veredas, que são caminho estreito, locais férteis para plantar
e colher, onde os buritis crescem e se tornam marcos de vida. Veredas, oásis
que preservam a vida, que ensinam para a vida.
Pelas veredas em que Riobaldo
passa, sementes vão sendo plantadas, uma vida vai sendo construída. Entre balas
e sangue, entre silêncio e prosa, entre lutas e repouso. Os olhos verdes de
Diadorim iluminam o seu caminho, mesmo na ambigüidade conflitante de seus
sentimentos. Diadorim homem, Diadorim mulher, revelação e libertação, que só a
morte, no final lhe traz.
E Riobaldo descobre a
impermanência: “Tempo é a vida da morte: imperfeição”
A morte necessita do tempo para acontecer. Sem o tempo, a morte morre. A
eternidade é o não tempo e nela a morte não existe. É a vida eterna. Aqui é o
espaço, é o tempo. É a imperfeição. Onde existe o espaço e o tempo, nada é
perfeito. Tudo começa, tudo acaba. É a impermanência permeando tudo. Só após a
morte, tudo permanece. É a perfeição.
E Riobaldo descobre Deus: “Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança:
sempre um milagre é possível o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a
gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e
pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo
Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se
não tem Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma!”
E mais à frente, afirma: “Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que
Ele é bondade adiante, quero dizer.” Descobrindo Deus, descobre o
perdão, essencial a uma vida de paz interior: E o faz pelo ensinamento de Zé
Bebelo: “Que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas
raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de
alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante
o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de
soberania, e farta bobice, e fato é”.
Aprende que não se deve deixar
que os outros escrevam a sua história. Somente a ele cabe fazê-lo. Pelo Grande
Sertão, que é a existência, Guimarães Rosa, por seus personagens vai trilhando
a Vereda, também caminho estreito – afinal, estreita é a porta anunciada para o
Paraíso – faz dela a orientação de sua vida e, poucos dias antes de se
encantar, revela aquilo em que cria: “A gente não morre. Fica
encantado”.
Evaldo A. D´Assumpção
(*) – Texto apresentado no Encontro
Médico Literário Nacional com Guimarães Rosa, em Cordisburgo, MG, de 13 a 16 de
julho de 2006. Promovido pela SOBRAMES – Sociedade Brasileira de Médicos
Escritores, regional MG com o apoio da Academia Mineira de Medicina.