quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A gente não morre. Fica encantado


Noite estrelada- Van Gogh

Em 1963, João Guimarães Rosa era eleito para a Academia Brasileira de Letras. Contudo, recusou-se a tomar posse, pois pressentia que, se o fizesse, iria morrer. Premonição? Acaso? Nunca saberemos. Pelo menos nesta vida. Em 16 de novembro de 1967 aceitou, finalmente, assumir a sua cadeira na Academia. Em seu discurso de posse disse: “A gente não morre. Fica encantado.” Três dias depois, em 19 de novembro de 1967, teve um enfarto fulminante, vindo a falecer. O médico, o embaixador, o escritor que revolucionou a literatura brasileira, se encantou. Seu livro mais conhecido, e com certeza o mais importante, faz 50 anos: “Grande Sertão: Veredas”.

Nele encontramos inúmeras passagens onde a transcendência, que aflorava na alma do homem Guimarães Rosa é frequentemente exaltada. O diabo, figuração do mal, recebe quase uma centena de nomes, na contagem feita pelo nosso confrade, Marco Aurélio Baggio, e confirmada pelo outro confrade, José de Souza Andrade Filho, no livro do primeiro, com prefácio do segundo: “Um abreviado do Grande Sertão: Veredas”.

Mas a relação vida e morte está presente em todo o texto de Guimarães Rosa.  “Viver é muito perigoso!” afirma pela boca de Riobaldo em algumas dezenas de vezes que não cheguei a contar. Viver é realmente muito perigoso. Talvez porque, como ele também afirmava, “A morte de cada um já está em edital”. Não diz se é com hora e data marcadas, mas com a certeza de que acontecerá. Não há vida sem morte. Nem mesmo com a decantada imortalidade acadêmica…

Contudo, a morte tem hora marcada. Não na cronologia dos calendários, mas na realidade dessa relação inseparável: vida e morte.  Morto não morre. A vida é indispensável para o morrer. Ora, vivo já não estou ontem. Para o ontem, já morri. E o amanhã, ainda não veio, portanto, nele ainda não vivo. Só agora, no tempo presente, vivo realmente. Portanto, agora é a única hora em que posso morrer, pois é a única hora em que vivo estou. Por isso mesmo, “viver é muito perigoso!” Cada instante em que vivo, pode ser o instante da minha morte. Daí a imperiosa necessidade de valorizá-lo plenamente.

Baggio destaca o necessário para se viver, no pensamento de Riobaldo – Guimarães Rosa – o necessário para atravessar o rio da vida, como ele diz: “a coragem, a alegria, o amor, a reza, o fazer, o contar, enfim o viver”. Para viver, é preciso viver. É preciso coragem para levantar em cada amanhecer. É preciso alegria para descobrir o sol, mesmo que as nuvens o estejam ocultando. É preciso o amor, caminho de duas vias onde só se ama quando se é amado. E só se ama quando se entrega confiante nas mãos do amado, da amada.

reza é necessária, pois é o ato de humildade que nos aproxima de Deus. E sem a humildade só existe a soberba, com a soberba não existe vida em plenitude. É preciso fazer, pois quem faz escreve a sua história e não deixa para os outros essa tarefa que é somente sua. É preciso contar, pois contando compartilhamos a vida e a vida só existe se compartilhada. O homem não foi feito para ser só e a solidão somente acaba quando podemos compartilhar o que fazemos e o que sentimos. Para viver, repetimos, é realmente necessário viver.

Na plenitude do que isso significa. Afinal, há os que estão vivos – mortos. Vegetam. Passam pela vida sem a ter vivido, e por isso estão permanentemente mortos. Para esses, a morte é banal.  São os jagunços de ontem, os pistoleiros de hoje. Dizia Riobaldo em sua iniciação: “Eu tinha de obedecer a ele, fazer o que mandasse. Mandava matar. Meu querer não correspondia ali, por conta nenhuma. Eu nem conhecia aqueles inimigos, tinha raiva nenhuma deles”. Mas matava, pois a vida era nada.

O tempo passa, algumas coisas vão pela maturação. Na intemporalidade do Grande Sertão, símbolo da existência, existem veredas. Veredas, que são caminho estreito, locais férteis para plantar e colher, onde os buritis crescem e se tornam marcos de vida. Veredas, oásis que preservam a vida, que ensinam para a vida.

Pelas veredas em que Riobaldo passa, sementes vão sendo plantadas, uma vida vai sendo construída. Entre balas e sangue, entre silêncio e prosa, entre lutas e repouso. Os olhos verdes de Diadorim iluminam o seu caminho, mesmo na ambigüidade conflitante de seus sentimentos. Diadorim homem, Diadorim mulher, revelação e libertação, que só a morte, no final lhe traz.

E Riobaldo descobre a impermanência: “Tempo é a vida da morte: imperfeição” A morte necessita do tempo para acontecer. Sem o tempo, a morte morre. A eternidade é o não tempo e nela a morte não existe. É a vida eterna. Aqui é o espaço, é o tempo. É a imperfeição. Onde existe o espaço e o tempo, nada é perfeito. Tudo começa, tudo acaba. É a impermanência permeando tudo. Só após a morte, tudo permanece. É a perfeição.


E Riobaldo descobre Deus: “Como não ter Deus? Com Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível o mundo se resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vai-vem, e a vida é burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar – é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho, pois, no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então a gente não tem licença de coisa nenhuma!

E mais à frente, afirma: “Mas eu hoje em dia acho que Deus é alegria e coragem – que Ele é bondade adiante, quero dizer.” Descobrindo Deus, descobre o perdão, essencial a uma vida de paz interior: E o faz pelo ensinamento de Zé Bebelo: “Que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a ideia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é”.

Aprende que não se deve deixar que os outros escrevam a sua história. Somente a ele cabe fazê-lo. Pelo Grande Sertão, que é a existência, Guimarães Rosa, por seus personagens vai trilhando a Vereda, também caminho estreito – afinal, estreita é a porta anunciada para o Paraíso – faz dela a orientação de sua vida e, poucos dias antes de se encantar, revela aquilo em que cria: “A gente não morre. Fica encantado”.
Evaldo A. D´Assumpção 
(*) – Texto apresentado no Encontro Médico Literário Nacional com Guimarães Rosa, em Cordisburgo, MG, de 13 a 16 de julho de 2006. Promovido pela SOBRAMES – Sociedade Brasileira de Médicos Escritores, regional MG com o apoio da Academia Mineira de Medicina.

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